Era para ser simples: após os atos de 8 de janeiro de 2023, a Justiça brasileira deveria separar o joio do trigo, punir os vândalos e os violentos, preservar a democracia. Mas o que começou como uma resposta legítima aos excessos daquele dia quente em Brasília descambou para algo bem mais sombrio — um experimento de repressão que parece ter perdido o rumo. Quase dois anos depois, o cenário é de perplexidade: pessoas sem histórico criminal amargam prisões prolongadas e acusações dignas de filmes de ação, enquanto outros, com atos concretos de perigo, já sentem o vento da liberdade.
O critério do STF para definir punições parece não seguir qualquer lógica jurídica imparcial. A gravidade dos atos foi substituída pela identidade política do réu como fator determinante para a severidade da punição, ou seja, depende menos do crime cometido e mais de quem está no banco dos réus.
Esse fenômeno, amplamente denunciado por juristas e especialistas em direitos fundamentais, caracteriza-se como lawfare — o uso do sistema judicial como ferramenta de perseguição política, distorcendo leis e procedimentos para eliminar adversários ideológicos.
A comparação de dois casos pode ilustrar com clareza essa seletividade do Judiciário.
Presa há dois anos por pintar uma estátua com batom
No dia 8 de janeiro de 2023, Débora Rodrigues dos Santos, uma cabeleireira de 39 anos, mãe de duas crianças de 6 e 11 anos, estava em Brasília. No meio do tumulto que se formava na Praça dos Três Poderes, enquanto milhares de manifestantes se concentravam em frente ao STF, Débora tirou um batom da bolsa e escreveu duas palavras na base de uma estátua:
"Perdeu, mané."
Duas palavras. Escritas com batom.
Menos de dois meses antes, a mesma frase havia sido usada pelo próprio presidente do STF, Luís Roberto Barroso, para debochar de um manifestante que o questionava sobre o código-fonte das urnas eletrônicas. Na ocasião, Barroso sorriu, virou as costas e seguiu seu caminho. Débora, porém, não teve a mesma sorte.
Em março de 2023, às 6 horas da manhã, agentes da Polícia Federal bateram à porta de Débora. Ela foi presa na 8ª fase da Operação Lesa Pátria, conduzida para capturar e punir os envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Frequentadora da Igreja Adventista do 7º dia, Débora passou a compartilhar cela com criminosas que mataram, traficaram e cometeram uma série de outros crimes.
Não importava que não houvesse provas de que Débora tivesse depredado patrimônio público. Tampouco importava que não houvesse qualquer indício de que estivesse armada. Seu "crime" estava registrado em uma foto: ela segurando um batom diante da estátua "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti. A frase que Barroso usou com ironia e deboche se tornou, para Débora, prova de um suposto ataque à democracia.
Mais de um ano após sua prisão, em julho de 2024, a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou uma denúncia contra ela, acusando-a de crimes dignos de um golpista armado. Segundo a Procuradoria, Débora teria cometido:
O problema? Não há vídeos, imagens ou testemunhos que comprovem que Débora invadiu prédios públicos ou participou de atos de depredação. A única "arma" que portava era um batom, e a frase que escreveu foi removida com um pano e um pouco de água.
Ainda assim, permaneceu presa por mais de um ano sem acusação formal. Segundo a defesa, a denúncia da PGR só foi apresentada após reportagens denunciarem que Débora estava há 483 dias atrás das grades sem qualquer avanço processual. Mesmo diante disso, três pedidos de soltura foram negados pelo ministro Alexandre de Moraes e pela própria PGR, sob a alegação de que Débora representaria "periculosidade social".
Em agosto de 2024, a 1ª Turma do STF — composta por Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino, Luiz Fux e Christiano Zanin — formou maioria unânime para aceitar a acusação da PGR. Apenas então Débora foi formalmente tornada ré, e seu caso avançou para a fase de instrução processual, com coleta de provas e depoimentos.
Em novembro de 2024, durante uma audiência de instrução, Débora buscou um último recurso para tentar sua liberdade. Ela leu uma carta endereçada a Alexandre de Moraes. No texto, pedia perdão, dizia que não sabia da importância da estátua e lamentava o que havia feito. O pedido foi ignorado.
Em janeiro de 2025, o ministro Gilmar Mendes concedeu prisão domiciliar a uma mulher em situação semelhante, justificando que o direito das crianças deveria ser prioridade. A medida, no entanto, não foi estendida a Débora. Mesmo sendo mãe de duas crianças pequenas, mesmo sem condenação definitiva, mesmo sem provas de que cometeu qualquer crime grave, Débora segue presa.
Poderíamos comparar o caso de Débora ao de estupradores, sequestradores ou assassinos, criminosos perigosos – que têm suas garantias processuais respeitadas – que frequentemente respondem em liberdade ou recebem punições incomparavelmente mais brandas que a de Débora. Também podemos comparar com os atos de vandalismo e agressão cometidos por integrantes de movimentos sem-terra no Congresso, ou mesmo à tentativa de invasão do próprio MST no STF, nenhum dos quais recebeu qualquer punição relevante.
Mas, para ser ainda mais didático, vamos comparar o caso de Débora com um outro também relacionado aos protestos de contestação do resultado das eleições de 2022.
A investigacao.
David Agape