Durante as negociações para um acordo de segurança entre Brasil, Argentina e Paraguai, o Itamaraty interveio para retirar trechos que ligavam facções criminosas brasileiras a práticas de terrorismo. A versão inicial do documento, que tratava da atuação conjunta na região da Tríplice Fronteira, fazia menção à “convergência” entre crime organizado e ações terroristas, citando diretamente o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
Segundo a apuração da Folha de S. Paulo, ofícios do Ministério das Relações Exteriores enviados ao Ministério da Justiça revelam a resistência da diplomacia brasileira em manter tais associações. A pasta comandada por Mauro Vieira sugeriu a exclusão dos trechos mais incisivos — e foi atendida. A versão final do pacto, ratificada pelos três países, já não traz nenhuma menção direta às facções brasileiras.
As mensagens obtidas pelo jornal indicam que a inclusão de pelo menos uma das passagens partiu da Argentina, com respaldo da Polícia Federal do Brasil. Ainda assim, o Itamaraty considerou inadequada a classificação e recomendou sua retirada.
Em nota oficial, o Ministério das Relações Exteriores declarou que o combate ao terrorismo é um princípio constitucional, mas ponderou:
“Eventuais vínculos entre terrorismo e crime organizado não podem ser tratados como automáticos ou universais”, disse a pasta.
O argumento central do governo brasileiro é que, embora as facções dominem territórios, utilizem armamento pesado e tenham redes internacionais, elas não atuam com base em causas ideológicas, o que dificultaria seu enquadramento legal como organizações terroristas nos moldes previstos pelo direito internacional.
Esse posicionamento tem causado atritos diplomáticos. Em conversas recentes com representantes do governo Biden, diplomatas brasileiros reafirmaram que PCC e Comando Vermelho não se enquadram tecnicamente na categoria de grupos terroristas, ao menos sob a ótica da atual legislação nacional.
Enquanto o governo Lula mantém essa postura, autoridades americanas têm caminhado em direção oposta — especialmente em relação ao Comando Vermelho. A Secretaria estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro está em tratativas com agências federais dos Estados Unidos para reconhecer o CV como uma Organização Criminosa Transnacional (TCO, na sigla em inglês).
Com essa mudança, órgãos como a DEA (Drug Enforcement Administration) e a ATF (Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives) ganhariam mais espaço legal para atuar diretamente contra a facção carioca, inclusive com sanções, cooperação em investigações e congelamento de ativos no exterior.
As tratativas com os norte-americanos seguem em paralelo à linha adotada por Brasília — e evidenciam uma dissonância que pode se aprofundar. Ao evitar classificar as facções como terroristas, o governo Lula tenta manter uma abordagem jurídica restrita e preservar a interlocução diplomática com regimes de diferentes matizes ideológicos. O risco, porém, é se isolar num momento em que o crime organizado brasileiro já cruza fronteiras — e desafia soberanias.